A epidemia de zika, que
colocou o país em emergência de saúde, reabriu o debate sobre as possibilidades
de aborto. Essa discussão, que já ocorre no Judiciário, deve chegar ao
Congresso Nacional. A deputada Maria do Rosário (PT-RS), favorável a uma legislação
mais ampla sobre o aborto, se opõe à proposta de autorizar por via judicial o
aborto de fetos com suspeita de microcefalia. A ideia foi levantada pela
organização não governamental feminista Anis — Instituto de Bioética. A ONG,
autora da ação que autorizou, via Supremo Tribunal Federal (STF), a interrupção
da gestação de fetos anencéfalos, em 2012, pretende conseguir o mesmo,
novamente pelo STF, para suspeitas de microcefalia.
"A microcefalia é
diferente da anencefalia, pois nasce uma pessoa com deficiência. No espírito da
lei atual, o caso não estaria contemplado”, explica Maria do Rosário. “Uma
coisa é a descriminalização do aborto em geral. Outra, a liberação em caso de
malformação. Uma pessoa com malformação é parte da sociedade. Acredito que a
legislação deveria ser mais abrangente, e não focada na deficiência”.
A Anis pretende cobrar no
STF o direito de escolha das mulheres e a responsabilidade do governo diante de
uma epidemia que não foi controlada. O pedido de autorização de aborto não fará
distinção entre diagnósticos de microcefalia com ou sem risco de morte.
A antropóloga Débora Diniz, pesquisadora da Anis, explica que o estado deve
oferecer o direito à escolha já que a atual epidemia de zika — e, em
consequência, o surto de microcefalia — são reflexos da negligência
governamental. “Esta é uma ação constitucional de direitos das mulheres, tendo
como objeto o direito à saúde. Mas em um sentido amplo. O Brasil vive uma crise
pelo zika vírus, mas é algo anunciado há quatro décadas: já fomos capazes de
erradicar o mosquito no passado, mas falhamos. Ele retorna, e com a força de
uma epidemia”, disse.
A solicitação terá três eixos. Primeiramente, o grupo refuta o posicionamento
do ministro da Saúde, Marcelo Castro, repetido pela presidente Dilma Rousseff
ontem, de que a batalha contra o Aedes aegypti está sendo perdida. “Essa não é
uma guerra para ser perdida. Nunca. Não só porque já a vencemos antes, mas
porque precisamos vencê-la novamente”, afirmou a antropóloga. “O segundo é que,
enquanto vivemos a epidemia do zika, um amplo pacote de proteções em saúde
sexual e reprodutiva precisa ser garantido às mulheres”, defende, citando como
exemplos a oferta de métodos contraceptivos, o diagnóstico precoce da
microcefalia e, para as mulheres que assim optarem, a interrupção da gravidez.
“Por fim, é importante protegermos os direitos sociais e fundamentais das
crianças com microcefalia e das mulheres — estamos falando de mulheres pobres,
nordestinas, que necessitarão de um forte amparo social para a proteção de seus
bebês. Não basta a promessa de um salário mínimo para elas”, diz, referindo-se
ao anúncio feito pelo governo federal de que vai estender o Benefício de
Prestação Continuada (BPC) às mães de crianças com microcefalia.
O BPC é um salário mínimo mensal oferecido a idosos com mais de 65 anos e a
pessoas deficientes de qualquer idade cuja renda familiar por pessoa seja menor
que um quarto do salário mínimo (R$ 220).
Para Rosângela Talib, coordenadora da ONG Católicas pelo Direito de Decidir, a
bolsa é insuficiente para as reais necessidades da família. “O valor nos parece
aquém das necessidades das mulheres, que deveriam ter o direito de decidir.
Elas não podem ficar a mercê de uma situação que não provocaram, causada pela
falta de capacidade do estado em prover saneamento básico”, afirma.
A presidente do Movimento Brasil Sem Aborto, Lenise Garcia, rejeita a
possibilidade de abrir a exceção para a microcefalia, assim como para quaisquer
casos de deficiências mentais e físicas. “A atitude eugênica de matar alguém
porque é deficiente se aproxima muito da eugenia praticada no nazismo.
Certamente, essa não é a sociedade que desejamos”.
Débora Diniz classifica o argumento da eugenia como “um ato de má-fé”, já que
as escolhas reprodutivas individuais de cada mulher não refletem uma política.
“Eugenia é uma política de extermínio de um estado totalitário e opressor como
foi o nazista. Não há nada semelhante em curso aqui: estamos diante de uma
epidemia causada por negligência do Estado, em que o aborto é uma escolha. E,
no caso da ação, uma pequena peça de uma arquitetura mais ampla de proteções
sociais e fundamentais”.A deputada federal Cristiane Brasil (PTB-RJ), que se diz contra o aborto “por
essência”, defende o direito de escolha somente nos casos de estupro e nos em
que não há possibilidade de vida fora do útero. “Entretanto, esse não é o caso
da microcefalia”, afirma. “Por outro lado, entendo a agonia das mães, que
esperam um filho totalmente saudável. A vida da criança vai ser diferente e os
pais ficam preocupados”, pondera.
Fonte Correio Braziliense